Vinte Festas:
da FIL à Atalaia
Por: Ruben de Carvalho
Artigo publicado n' «O Militante» de Setembro/Outubro de 1996
Ao longo dos seus vinte anos, a Festa do Avante! realizou-se em cinco lugares diferentes: em 1976, nos pavilhões da FIL, na Junqueira; em 1977 e 78, nos terrenos do hipódromo do complexo desportivo do Estádio Nacional, no Jamor; de 1979 a 1986 no Parque de Monsanto, no Casalinho da Ajuda; em 88 e 89 em Loures e, desde 1990, em terrenos finalmente definitivos, a Quinta da Atalaia, na Amora-Seixal. A compra da quinta pelo PCP em 1989, através de uma campanha de fundos que rapidamente reuniu os 150 mil contos investidos, pôs termo a uma «peregrinação» ditada por sucessivas recusas e dificuldades levantadas à realização da Festa: nas suas últimas edições, a Festa tem assim podido contar com a planificação e os investimentos finalmente tornados possíveis.
Estas longas duas décadas de vida confirmaram a Festa do «Avante!» como um acontecimento sem paralelo no panorama político e cultural português onde constitui o maior acontecimento de massas do País. Festa organizada e construída pelos comunistas e pelo seu Partido, inequivocamente identificada com o nome do órgão central do PCP, a Festa ultrapassa contudo em muito as fronteiras político-partidárias do PCP em todos os seus aspectos: no seu programa cultural e na diversidade das participações de artistas e criadores e, sobretudo, na ampla e entusiástica partipação do público no qual crescentemente se destaca a juventude.
Cada edição da Festa assumiu traços específicos gerados pelo seu programa político-cultural, pelos aspectos de construção e decoração, mesmo pela forma como se integrou no momento político, social e de luta de cada ano. Essa diversidade, porém, apenas acentua uma personalidade, uma identidade própria da Festa, mantida e construída ao longo de vinte anos e para a qual penso que três edições contribuiram determinantemente: a primeira, em 1976, a de 1977 com a ida para o Jamor e a de 1990, com a Atalaia.
Logo nos primeiros dias da instalação do PCP no seu primeiro Centro de Trabalho de Lisboa, na Av. António Serpa, na porta de um dos gabinetes havia já um cartaz onde se dizia... Festa do Avante!.
Um tempo e um lugar
Seria contudo necessário aguardar dois anos para a primeira Festa. Em rigor, numerosas realizações culturais de massas se desenrolaram ao longo dos anos de 74 e 75, com destaque para os convívios em Belém (com a pintura do grande mural colectivo que o fogo vigrande mural colectivo que o fogo viria a destruir no incêndio dos pavilhões onde funcionou o «Mercado do Povo»), no estádio «1º de Maio», etc..
Mas duas circunstâncias de índole completamente diversa viriam a exercer um papel determinante.
Por um lado, a descoberta de um local propício para a realização de grandes iniciativas: os pavilhões da Feira das Indústrias de Lisboa, nessa altura ocupados pelos trabalhadores em conflito com o patronato da Associação Industrial Portuguesa. Infraestruturada para feiras e exposições, a FIL oferecia condições ao tempo únicas para montar um vasto espaço de convívio, o que foi aproveitado para organizar um reveillon de passagem do ano de 75-76.
Já no ano anterior se organizara uma festa na noite de fim de ano no Pavilhão dos Desportos (hoje Pavilhão Carlos Lopes), mas a iniciativa de 76 partiria directamente do Partido e, mais directamente, do conjunto de estruturas ligados ao Avante!, à editorial e à estrutura de distribuição que viria a dar a CDL.
Mas um segundo elemento concedeu especial significado àquele reveillon: realizado pouco mais da derrota da esquerda militar no 25 de Novembro e num momento complexo do ponto de vista político, a festa de fim de ano trouxe de novo à actualidade as possibilidades das iniciativas de índole cultural e de convívio como elemento de intervenção política, seguindo uma linha de grandes tradições antes do 25 de Abril (cooperativas culturais, convívios estudantis, etc.) que o fervilhar revolucionário de 74/75 relegara para segundo plano.
Destes dois factores resultou a decisão de avançar com a Festa, organizada essencialmente a partir daquelas estruturas: a editora, a redacção do Avante!. A Festa de 76 reflectiu, naturalmente, algumas condicionantes ditadas pelo próprio recinto: foi profundamente exposicional, com uma grande componente de venda de livros e discos, um número enorme de palcos (onze!) de todos os tipos. Faltavam-lhe ainda alguns traços inteiramente definitórios da festa popular, nomedamente uma mais vasta componente comercial e, sobretudo, a comida, os restaurantes, o convívio à volta da mesa.
Mas desde logo se fixaram alguns decisivos elementos. Antes de tudo o mais, a dimensão de massas. A afluência excedeu tudo quanto se podia imaginar, a FIL abarrotava literalmente de gente num ambiente de fraternidade e alegria que se iria prolongar por todas as edições futuras. Esta dimensão de massas caracterizava-se ainda pelo seu carácter profundamente popular e unitário, desde logo se tornou evidente que a assistência ia muito para além dos limites da organização do Partido. Mas, particularmente importante e significativo, estes traços não era conseguidos mediante um apagamento do Partido, antes pelo contrário: a presença do Partido era clara e assumida, mas sem que se traduzisse num sectarismo isolacionista ou instrumentalizador.
As presenças internacionais de jornais de outros partidos e o empenho posto nalguns temas nacionais (a Reforma Agrária especialmente) concederam igualmente um traço que não se apagaria: a solidariedade, a festa enquanto afirmação de solidária troca de experiências, momento de apoio aos que lutam. E, finalmente, a grande diversidade e qualidade das presenças culturais (de Luigi Nono ao grupo rock «Area», do coro da Academia de Amadores de Música a Archie Shepp) marcaram a abertura cultural e estética servida por um esforço de produção de qualidade que revelaria um Partido aberto à criação, à beleza, à modernidade, tanto quanto ao património cultural do povo e do País.
A terra e o sol
Em 1977, na primeira das manifestações de intolerância que se seguiriam, a Associação Industrial Portuguesa recusou a cedência da FIL para realização da Festa. A peregrinação da busca de local começou. E nesse ano, no meio de alguma polémica, foi tomada uma decisão histórica: fazer a Festa ao ar livre.
Um homem desempenharia nessa decisão um papel central, Joaquim Campino, não apenas por dele ter partido a sugestão de se usar o abandonado hipódromo do Jamor, mas essencialmente pela sua consciência de que uma festa como a do Avante!, popular, de massas, exigia o ar livre. A escorar esta sua opinião, uma experiência enraízada numa actividade ligada às forças progressistas nas décadas de 40 e 50 - o campismo, os convívios campistas de ar livre, as confraternizações nacionais e internacionais em torno dos «fogos de campo» sobre as quais a repressão lançava olheres suspeitosos - e com razão dee ser...
De certa forma, é com a ida para o Jamor que a Festa adquire traços de identidade que se mantêm até hoje.
Com o ar livre modificou-se o próprio conceito urbanístico da Festa: a Festa passou a ver-se e, dentro da Festa, os visitantes passaram a ver-se a si próprios. A circulação, a decoração, a lógica plástica dos pavilhões, tudo ganhou exigências novas pela dimensão e pelo facto de se desenhar sobre um terreno inteiramente livre e aberto. Do ponto de vista plástico, foi o primeiro ano em que Rogério Ribeiro daria um contributo que, nas formas rasgadas e amplas e nas decorações de cores fortes e directas, daria à Festa não apenas um fascinante ambiente de ar livre profundamente estetizado, mas também um ambiente cromático em que se unia a combatividade e alegria da motivação da Festa com um cunho indelevelmente português e popular.
O carácter popular acentuou-se. Depois, o próprio afastamento de meios urbanos, introduziu no Jamor dois factores fulcrais da festa popular: a comida e a bebida e o comércio.
Da experiência da FIL verificara-se de facto a indispensabilidade de assegurar comida para os visitantes; por outro lado, para além dos livros e discos, a Festa passou a contar com uma miríade de vendas, com especial relevo para produtos de artesanato, de cultura popular, trazidos pelas organizações de todos os pontos do País.
Mas talvez o passo mais importante dado em 77 tenha resultado do gigantesco esforço que representou erguer a Festa. Em 76, a FIL, infraestruturada, com pessoal próprio e especializado, resolvera muitos problemas; em 77 foi preciso fazer tudo. Erguer pavilhões, enterrar canalizações e redes eléctricas, tratar dos esgotos e dos abastecimentos, limpar o terreno. Se na FIL quase bastara desenhar, a partir daqui a responsabilidade e capacidade de um engenheiro, Fernando Vicente, era exigida pela própria realidade. Tudo isto num país de há duas décadas, com soluções técnicas limitadas, nenhuma experiência em iniciativas deste tipo e dimensão - tudo ainda agravado por meios financeiros limitados. A Festa de 77 só foi possível porque a organização do Partido se empenhou directamente na sua construção. Ao sair fisicamente das mãos dos militantes, a Festa passou a ser não apenas um ponto de encontro e de convívio mas uma obra colectiva, uma criação colectiva do colectivo partidário. Ao visitar a sua Festa, o Partido revia-se no que directamente construira, para si e para os milhares de visitantes.
Politicamente, a Festa assumia uma importância que dificilmente se poderia ter previsto. Passou a marcar a rentré política e a assegurar o rápido retomar de trabalho das organizações após o período de férias. Em si própria, a Festa, no meio da dura batalha ideológica, constituia o mais poderoso desmentido da imagem que inimigos e adversários pretenderam sempre dar do Partido, fosse o do jamais verificado «declínio irreversível», fosse o do sempre negado «fechamento às novas realidades» humanas e culturais.
Chão nosso
De 76 a 90 a Festa conheceu ainda mais três locais. Mas, mais importante talvez que as dificuldades deste imposto nomadismo, era a incerteza de ano para ano que impedia planificar e construir a prazo. Durante 15 anos fizemos e refizemos tudo todos os anos. Enterrámos e desenterrámos, erguemos e demolimos, dresfraldámos e arriámos, pintámos efémero e impediram-nos a economia e a planificação.
A complexidade da situação em Loures em 88 e 89 reforçou um estado de espírito que de há muito se fazia sentir na organização do Partido: é preciso um terreno para a Festa, é preciso acabar com a constante incerteza, com o constante fazer e refazer, montar e desmontar.
A compra da Quinta da Atalaia constitui como que a definitiva institucionalização da Festa na sociedade portuguesa. A partir de então, já nada pode impedir os comunistas portugueses de erguerem a sua Festa, de a oferecerem aos trabalhadores, à juventude, de para ela convidarem os seus amigos e camaradas.
Esta afirmação de força e determinação não aconteceu num momento qualquer. Em 1989 o Mundo contemporâneo registava a sua mais dramática viragem deste século, o campo socialista desmoronava-se, a União Soviética caminhava para o desaparecimento, partidos comunistas de todo o mundo manifestavam-se incapazes de ultrapassar contradições internas e dificuldades de todo o tipo. O PCP não deixava de reflectir a agudeza do momento da luta política e de classes, o debate ideológico e a defesa da unidade do Partido estavam na ordem do dia.
A compra da Quinta da Atalaia para a Festa, em si própria e pelo que significou de apoio, a rapidez com que se concretizou a recolha dos 150 mil contos do seu custo, constituiu uma poderosíssima manifestação de força do PCP e uma profunda afirmação de confiança dos comunistas portugueses no seu Partido e na sua luta.
Festa do povo e da cultura, da juventude e dos trabalhadores, a Festa do Avante!, vinte anos depois, é, sobretudo, a firme afirmação de que, para nós, comunistas, o futuro continua a ser possível e mantem-se como uma exigência.
Fizemos as primeiras vinte, mas, tal como a luta - a nossa Festa continua!
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