quinta-feira, 17 de outubro de 2002

Pedro Nunes, um matemático de génio

Texto de Rui Albuquerque

Comemora-se este ano o 5.º centenário do nascimento de Pedro Nunes Salaciensis (1502-1578), o matemático mais prestigiado pelos seus pares europeus que Portugal já conheceu. Recordemos o contexto histórico com uma nota muito particular: está hoje provado que as naus do século XV iam aos novos mundos e voltavam, guiadas pelos poucos mas bons instrumentos dos marinheiros e navegadores portugueses. O progresso social gerado pelas descobertas marítimas e restante desenvolvimento pré-renascentista - Lisboa tornou-se uma das maiores cidades europeias -, possibilitou depois o aparecimento de figuras ilustres como Garcia de Orta (c.1499-1568), Garcia de Resende (1470-1536), Damião de Góis (1502-1574), Gil Vicente (c.1465-c.1536), Luís de Camões (c.1524-1580) e Pedro Nunes.

Nascido em Alcácer do Sal, Pedro Salaciensis formou-se em Medicina, Línguas e Filosofia pela Universidade de Lisboa. Possivelmente por ter estudado em Salamanca, casou com a castelhana Guiomar de Arias. Em 1530 recebeu a nomeação de cosmógrafo do reino e foi provido nas cadeiras de Filosofia Moral e Lógica na universidade portuguesa. Não conseguindo ouvintes em Filosofia Moral, o mesmo vindo a acontecer a Garcia de Orta que o substituiu, foi incumbido de ler Metafísica. Em 1532 Pedro Nunes deixou a universidade, inegavelmente armado de uma formação completa no mundo da escolástica (1).

Em 1544, o rei D. João III chamou Pedro Nunes para leccionar Matemática em Coimbra e nomeou-o cosmógrafo-mor do reino. Terceiro personagem desta história nascido em 1502, o rei foi um governante virado para as questões do ensino e difusão da cultura mas que haveria de ficar recordado pelo estabelecimento da Santa Inquisição (2) no seio do Estado português. Desde a publicação de De crepusculis liber unus, em 1542, Nunes granjeou a maior admiração internacional. Tornou-se um cosmopolita partilhando as suas investigações e ensinamentos entre Basileia, Coimbra, Lisboa e Salamanca.


A obra


Como geómetra, Pedro Nunes estudou a astronomia náutica a fundo (certo navegador acometia-o com problemas suscitados nas viagens para o Brasil), tendo adicionado à teoria a curva que é hoje designada por «loxodrómica» - a rota que um barco tomaria se cortasse todos os meridianos da superfície da Terra pelo mesmo ângulo - e que ele percebeu ser diferente dos círculos máximos e semelhante a um hélice.

A geometria intrínseca duma qualquer superfície - descrição das cartas ou mapas, mais as suas geodésicas ou caminhos mais curtos - está sempre condicionada pela «curvatura», uma certa e determinada quantidade de que só no século XIX se deu explicação cabal, mas da qual Pedro Nunes parece ter estado ciente no caso da superfície terrestre. Note-se que de modo nenhum a «planificação da esfera», a cartografia, se torna um exercício trivial.

Bom investigador físico-matemático, Pedro Nunes lá deve ter compreendido como Marx e Lénine que a prática é o critério da verdade. Preocupado com o rigor das suas teorias, inventou um instrumento de medição dos ângulos, baptizado de «Nónio» em seguimento do apelido latinizado do seu autor. Em concepção, o Nónio consegue medir os ângulos até várias casas decimais por meio de um desdobramento consecutivo das escalas.

Consta, por se ter ouvido dizer, que Pedro Nunes construiu mesmo as suas «máquinas de precisão» em Coimbra. Porém não está demonstrada a existência de algum Nónio alguma vez em Portugal. Certo mesmo é que não era fácil produzir tais instrumentos com precisão. Tendo o nosso matemático resolvido as questões da duração dos crepúsculos matutino e vespertino, bem como encontrado o dia em que eles são menores, para um local da Terra e uma posição do Sol dados, não é de excluir que tivesse querido confrontar as suas «fórmulas» com a realidade. Confirmados pela prática e por meio do Cálculo Diferencial, séculos mais tarde, os acertados teoremas de Nunes teriam bastado para o levar à imortalidade na história da Ciência.

Nunes publicou imensas obras. Algumas viradas para as questões da marinha - domínio em que veio a ser atacado sem razão por ser apenas um teórico. Em 1537 publicou Sobre certas dúvidas da navegaçam e Tratado da defensam da arte de marear. Se as outras obras iniciais são traduções para português, com anotações, dos tratados de ciência da Idade Média, incluindo uma tradução comentada de parte do célebre Almagesto de Ptolomeu (c.90-c.168, o grande astrónomo geocentrista, que trabalhou na biblioteca de Alexandria), as que se seguiram, não mais escritas em português, fizeram escola pela Europa fora. Por exemplo, Tycho Brahe (astrónomo dinamarquês, mestre de Nicolau Copérnico), Simon Stevin (engenheiro dos diques holandeses), Clavius (matemático alemão dito o Euclides do século XVI) e outros estudaram com muito respeito os escritos de Pedro Nunes. Nomeadamente os originais De crepusculis liber unus (Lisboa, 1542), De erratis Orentii Finaei (Coimbra, 1546, uma revisão dos trabalhos de Oronce Finé, professor do Collège Royal, hoje Collège de France, que pretendia ter resolvido os três problemas já então famosos da quadratura do círculo, duplicação do cubo e trissecção do ângulo), Petri Nonii Salaciensis opera (Basileia, 1566), De arte atque ratione navigandi libri duo (Coimbra, 1573, reedição da obra anterior com novos desenvolvimentos) e o Libro de algebra en arithmetica y geometria (Antuérpia, 1567, um grande tratado de álgebra, infelizmente escrito num estilo já então datado que logo viria a ficar ultrapassado).

Nunes foi-se desligando da escolástica conquanto mais se dedicava às ciências exactas. Assim, as razões que o levaram a não afirmar adesão à teoria heliocêntrica não podem ser analisadas com ligeireza ou explicadas por simples posicionamento ideológico. A sua Petri Nonii Salaciensis opera mostra que ele estudou essa obra revolucionária que foi De revolutionibus, do célebre astrónomo polaco Nicolau Copérnico, publicada em 1543 em Nuremberga. Com efeito Pedro Nunes encontrou, nesse livro, erros matemáticos em certas proposições da trigonometria esférica que podem muito bem ter alertado a sua «dúvida metódica». Todavia, foi um dos primeiros homens de ciência a comentar aquelas novas teorias.


A Ciência merece respeito


A história de Pedro Nunes começa e acaba em Alcácer. Primeiro «do Sal», no fim «Quibir». Morreu no mesmo ano da derrota de D. Sebastião e dois anos antes da perda da soberania portuguesa para a coroa espanhola.

Enquanto a primeira metade de Quinhentos está ligada a fortes desenvolvimentos sociais gerados por diversos factores, a segunda é o voltar ao metafísico, à perseguição das ideias, à capitulação política da nobreza reinante, e o começo do atraso científico, tecnológico e logo económico que se vai acentuar, até à época do Marquês de Pombal, em relação à Europa do Norte.

É deveras intrigante o paralelo que se pode estabelecer entre aqueles períodos e o progresso gerado pós 25 de Abril de 1974 e eminente ascensão das forças comprovadamente mais retrógradas (patronato e igreja) à totalidade dos domínios do poder no nosso país. Neste sentido, é novamente de reafirmar a importância - crescente - do Partido Comunista Português na luta pelas causas da ciência, da cultura, da liberdade e da justiça.


(1) Método de especulação teológico que ajuda à penetração racional das «verdades reveladas» nas várias ciências.

(2) Organismo trazido do Vaticano para a Igreja Portuguesa, constituído por «padres-pides», tinha o objectivo de reprimir os que difundiam ideias «heréticas», como o Protestantismo, e de pugnar pelo apuramento da «raça cristã» (repressão de mouros, moçárabes, judeus). Só formalmente desaparecido no século XIX, contribuiu em muito para o atraso científico, social e económico do País. Entre outros, levou á morte prematura de Damião de Góis.

in «Avante!» Nº 1507 - 17.Outubro.2002